O G1 publica abaixo, com exclusividade, reportagem da 13ª edição da revista “Unesp Ciência”. Clique aqui para ter acesso ao conteúdo completo da edição.
No mês que vem, quando o governo federal anunciar de quanto foi o desmatamento da Amazônia neste ano, é muito provável que ele mostre a menor taxa desde 1988, quando o dado começou a ser medido anualmente pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Uma vitória no caminho do compromisso assumido internacionalmente de reduzir o desmatamento para diminuir as emissões de gases de efeito estufa do país. Paralelamente, porém, é provável que o Congresso esteja votando um projeto de lei que substitui o atual Código Florestal – e que muitos pesquisadores e ambientalistas entendem ir na contramão desse compromisso, ao diminuir a proteção às florestas e permitir novos desmatamentos.
O texto original, de 1965, que sofreu alterações em 1989 e em 2000, dispõe sobre as chamadas APPs (áreas de preservação permanente, como matas ciliares e topos de morro) e a Reserva Legal, ou RL (trechos de propriedades privadas que não podem ser desmatados – a porcentagem varia conforme o bioma). Bastante rigoroso, ele é também largamente desrespeitado, e mais de 80 milhões de hectares de terra no país estão em situação de não conformidade com o código. A proposta de substitutivo elaborada pelo deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e já aprovada em comissão especial para votação em plenário, flexibiliza esses instrumentos de proteção com a justificativa, entre outras, de regularizar proprietários que infringiram a legislação vigente.
Esse projeto de lei vem sendo amplamente criticado por pesquisadores de diversas áreas diretamente relacionadas à matéria e não há informações que assegurem sua fundamentação científica, seja para as alterações previstas por seus dispositivos, seja como contraposição às objeções levantadas contra ele.
Cientistas alegam que, ao tentar minimizar os problemas do agronegócio, a proposta acaba colocando em risco a biodiversidade e os serviços ambientais prestados pela floresta. Quando questionado sobre o assunto, Aldo diz que ouviu, sim, pesquisadores, sem citar algum nome específico ou mostrar papers publicados. Certa vez, em uma coletiva de imprensa, deixou escapar de onde teria vindo sua consultoria científica: um assessor é biólogo. Mas a própria comunidade científica faz um mea-culpa. Apesar de não faltarem trabalhos que mostrem as consequências das supressões de vegetação nativa previstas, pesquisadores admitem que eles mesmos demoraram para se manifestar sobre a necessidade de modificar o código, inclusive para torná-lo mais efetivo.
“O problema da maior parte da pesquisa existente é ela não ser adequadamente direcionada (ou decodificada) para atender demandas vindas da legislação. Não acho correto os pesquisadores afirmarem que existe enorme quantidade de informação disponível se ela não foi, com a ajuda deles, convertida em algo que possa ser útil na discussão”, desabafa Gerd Sparovek, da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), da USP. “O Código Florestal vem sendo negligenciado pelos agricultores, por quem fiscaliza, e também na pesquisa praticamente desde que ele foi criado. Estamos correndo atrás do prejuízo, com pressa e sem o cuidado e rigor necessários ao processo de produção científica, em muito, porque não demos a atenção devida ao problema no passado.”
É desse agrônomo o cálculo do tamanho do déficit de vegetação no país. De acordo com o Código Florestal, deveria haver em APPs 103 milhões de hectares (Mha) no país, mas só 59 Mha estão protegidos. Já em Reserva Legal, o déficit é de 43 Mha, diante de 254 Mha previstos. São terras que, pela legislação vigente, deveriam ser recuperadas. O substitutivo proposto por Rebelo exime dessa responsabilidade terrenos, desmatados até 22 de julho de 2008, que sejam considerados áreas rurais consolidadas (com edificações, benfeitorias e atividades agrossilvipastoris), para as quais deverão ser promulgados programas de regularização ambiental em até cinco anos a partir da publicação da lei.
“Não há justificativa nenhuma para isso”, critica o biólogo Carlos Joly, da Unicamp, e um dos coordenadores do programa Biota/Fapesp. “O código foi modificado em 1989, usou-se o avanço do conhecimento científico para aprimorar a versão original e não há por que agora dizer que quem descumpriu até 2008 está anistiado. Tem de exigir a restauração. Temos um conhecimento técnico para que isso aconteça. Tem um custo enorme? Bem, então vamos pensar em maneiras como isso pode ser financiado”, complementa.
Essa medida, acreditam pesquisadores ouvidos pela reportagem, pode incentivar novos desmatamentos – perderia o sentido respeitar as regras se no intervalo de alguns anos pode surgir uma nova lei e perdoar os passivos ambientais do passado.
Joly organizou em agosto um seminário na Fapesp com pesquisadores de várias áreas do conhecimento para discutir os principais impactos que a alteração do código pode trazer para fauna e flora e para os serviços que a floresta presta em termos de proteção dos recursos hídricos, polinização, dispersão de sementes, etc. São dados já conhecidos há tempos pela academia, mas que foram apresentados juntos (e serão compilados até o final do ano em uma edição da revista Biota Neotropica) para tentar estender a discussão e demover os congressistas da ideia de votar o projeto agora, logo depois das eleições.
O fato de o código hoje ser tão desrespeitado mostra que de fato tem algo de errado com ele. Precisamos chegar a um consenso, mas para isso precisamos nos basear nas pesquisas. E há lacunas a serem preenchidas, como estudos que mostrem alternativas, que apontem exatamente o tamanho do custo [socioeconômico e ambiental] do desmatamento em relação à recuperação da mata e ao investimento de tecnologias na agropecuária, por exemplo. Mas a tônica é evitar uma votação imediata, porque faltam dados para tomar uma decisão”, defende o ecólogo Jean Paul Metzger, da USP.
Extinção em massa
Em carta publicada em 16 de julho na revista Science, ele, Joly e colegas alertaram que a modificação do código pode levar a um aumento “substancial” de emissões de gás carbônico e à extinção de pelo menos 100 mil espécies. Esse número considera uma eventual perda de 70 milhões de hectares na Amazônia em decorrência da diminuição da Reserva Legal. O projeto de lei prevê que “pequenas propriedades” com até quatro módulos fiscais – o que na região pode passar de 400 hectares – não precisam manter a área. Além disso, em algumas condições, permite que as APPs sejam incluídas no cômputo da RL do imóvel. E autoriza que a recuperação da reserva seja realizada com plantio intercalado de espécies nativas e exóticas, sendo que estas não podem exceder 50% da área total a ser recuperada.
Outra mudança que pode ter implicação direta sobre a biodiversidade é a redução de APPs dos atuais 30 metros para 15 metros nas margens de corpos d’água com menos de 5 metros de largura. “Isso representa mais de 80% dos rios brasileiros”, afirma Joly. Peixes e anfíbios serão os primeiros a sentir as mudanças, de acordo com uma dupla de pesquisadores da Unesp.
A bióloga Lilian Casatti, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce), do câmpus de São José do Rio Preto, que está compilando os trabalhos sobre o impacto na ictiofauna para a Biota Neotropica, lembra que a maioria das espécies de peixes de água doce do país vive nos pequenos riachos, dependendo assim da presença de matas ripárias. A supressão da floresta significa, por exemplo, uma maior incidência de sol na água, aumentando sua temperatura, o que leva a uma proliferação de algas e, por fim, à eutrofização da água, provocando a morte de peixes (veja quadro abaixo).
Ela comparou a situação de 95 riachos do noroeste do Estado, escolhidos aleatoriamente – metade estava totalmente desmatada nas margens e metade mantinha alguma preservação. “A diferença era visível. Onde não tinha mata, as espécies exóticas, mais tolerantes, dominavam, substituindo as espécies nativas especialistas.”
Os peixes maiores, de interesse para a pesca, também podem sentir o impacto da diminuição da mata ciliar. “Se as cabeceiras ficam desprotegidas, a parte mais larga, rio abaixo, vai acabar sofrendo com o assoreamento. Muitas espécies que colocam os ovos no fundo dos rios podem assim ter os filhotes soterrados. Além disso, se o leito está assoreado, o rio perde em volume e, sem as colunas d’água, grandes predadores, como tucunaré, dourado, jaú e pintado, vão perder área.”
Também nos menores riachos é onde ocorre a maioria das espécies de anfíbios, lembra Célio Haddad, da Unesp de Rio Claro, que colaborou com Felipe Toledo, da Unicamp, além de outros especialistas, para revisar a mudança do código sob o ponto de vista da conservação de anfíbios. Esses animais se reproduzem na água, mas usam as matas ciliares para abrigo e alimentação. A diminuição de APPs, assim como de Reserva Legal, pode promover redução e fragmentação de habitats, com consequências como endogamia (cruzamento entre parentes, levando à perda de diversidade genética), além de aumento da radiação, promovendo insolação direta sobre os ovos, larvas e girinos.
Para Haddad, além de não ser “ético o ser humano destruir outros organismos, eliminar espécies”, a perda de anfíbios, assim como pode ocorrer com os peixes, vai alterar o equilíbrio ecológico. Reduzir suas populações significaria ter uma proliferação de insetos, que podem ser praga da agricultura ou transmissores de doenças para o homem, além de diminuir a oferta de alimento para peixes, répteis, aves e mamíferos que predam anfíbios. “Deveríamos estar indo no outro caminho, de reconectar os fragmentos. A proposta vem na contramão de tudo o que a ciência está falando que é para fazer, não só por uma questão de bondade com os organismos, mas para o bem do ser humano”, afirma.
Quanto maior, melhor
Para a manutenção mais efetiva de algumas espécies de animais, aliás, os pesquisadores pedem uma revisão diferente do Código Florestal: que ele fique mais rigoroso. É a conclusão a que chegaram os pesquisadores Carlos Peres e Alex Lees, da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, após analisarem populações de aves e mamíferos em 37 fragmentos florestais na região de Alta Floresta (MT), em 2005.
Com o apoio de imagens de satélites, eles definiram as condições de largura e estrutura mínimas necessárias para manter viáveis esses grupos e concluíram que a funcionalidade desses corredores é maior quando eles estão conectados a grandes manchas de matas. Os espaços mais estreitos (com menos de 200 metros de largura) e isolados – condição da maioria das matas que restaram no arco do desmatamento na Amazônia – apresentaram um terço das aves e um quarto dos mamíferos vistos nos fragmentos maiores e mais conectados.
“Qualquer extensão de mata em regiões já muito desmatadas, como grande parte do arco do desmatamento amazônico, cumpre um papel de importância altamente desproporcional na retenção da biodiversidade”, explica Peres. “A largura exigida pelo código vigente representa um mínimo necessário para que esses remanescentes continuem funcionando tanto como corredores ecológicos, amenizando a hostilidade de qualquer paisagem desmatada, quanto como habitat florestal para uma gama de espécies com níveis de especificidade diferenciados.”
Resultados semelhantes foram obtidos por Fernanda Michalski, do Instituto Procarnívoros e da Universidade Federal do Amapá, que estudou a eficiência dos corredores para carnívoros de médio porte na mesma região. Seu propósito era verificar que tipos de fragmentos estavam sendo habitados por esses animais, para analisar quão coerente é a nossa legislação em termos de conservação. Descobriu que o tamanho das matas ao longo de cursos d’água é, de longe, o principal determinante para a viabilidade de diversas espécies.
Durante os oito anos em que esteve no norte de Mato Grosso estudando a fragmentação na Amazônia, a pesquisadora não encontrou em áreas florestadas com cerca de 800 hectares animais como queixadas. Em fragmentos de 100 hectares, a probabilidade de ocorrência de onças-pintadas foi inferior a 40%.
Outro impacto importante é no chamado efeito de borda – a vegetação que fica, como o nome diz, na borda de um corredor ou fragmento é sempre mais afetada pelas perturbações externas, como luminosidade, ressecamento do ar e do solo, rajadas de ventos, queimadas, etc. De acordo com Metzger, em artigo publicado na revista Natureza e Conservação sobre as bases científicas do código atual, esses efeitos são mais intensos nos primeiros 100 metros de largura, “o que implica que corredores com menos de 200 metros são formados essencialmente por ambientes de borda, altamente perturbados”, escreve, citando Peres e Lees. Fernanda conta que notou, em trechos de 100 metros no Mato Grosso, “uma grande proporção de árvores mortas, especialmente de grande porte”.
Os autores sugerem que as APPs em torno de rios na Amazônia deveriam manter pelo menos 200 metros de área florestada de cada lado para que haja uma plena conservação da biodiversidade. “A manutenção de corredores de 60 m (30 m de cada lado do rio), conforme a legislação atual, resultaria na conservação de apenas 60% das espécies locais”, cita Metzger.
Serviços para o homem
Em setembro, Fernanda, Peres e o zoólogo Darren Norris, que é doutorando na Unesp de Rio Claro, frisaram em carta na Science que “as reformas poderão levar a perdas irreversíveis à biodiversidade”. Eles reafirmam que a redução dos corredores florestais significa que as paisagens vão perder a capacidade de reter e conectar espécies e de manter a qualidade e o fluxo de recursos hídricos. O empobrecimento do ambiente poderá ser sentido pelas erosões no solo e pela cada vez menor capacidade de captação de água, o que em si pode trazer consequências econômicas, como a desvalorização do preço da terra.
“Há uma relação direta com o funcionamento do ecossistema. A floresta não vai mais funcionar como deveria, não terá mais dispersor de semente nem polinizador. Com isso, tudo o que ela provia, como reduzir assoreamento de rios, diminuir a temperatura local, vai se perder”, complementa Mauro Galetti, da Unesp de Rio Claro e organizador de uma compilação de estudos sobre impactos nos mamíferos.
José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia e um dos principais especialistas em recursos hídricos do país, concorda. “Os leigos, em geral, esquecem que a vegetação é parte do ciclo hidrológico. Sem ela, a água não consegue se infiltrar, diminui a capacidade de produção de vapor d’água que depois vai trazer chuva.” Segundo ele, o aspecto mais prático dessa história é que quando há uma vegetação protegendo os mananciais tem-se um custo de tratamento de água menor. “Em algumas áreas do interior de São Paulo onde o manancial está bem protegido, calculamos que o tratamento de mil metros cúbicos custa R$ 2. Quando não há vegetação, isso pode subir para R$ 300.”
Sem contar que o maior assoreamento dos rios pode tornar mais frequentes e intensas as inundações rio abaixo, afetando as populações ribeirinhas que moram ao longo do curso d’água. “Transfere-se o ônus da produção agrícola para a população mais carente de centros urbanos”, diz Joly.
Ele cita como exemplo um problema que já se observou no sudoeste de São Paulo, onde foi extinto localmente o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) em razão da destruição das várzeas (essas áreas deixam de ser consideradas APPs pelo novo código) para construção de hidrelétricas. Em estudo realizado na área de inundação da usina Sérgio Motta, José Maurício Barbanti Duarte, da Unesp de Jaboticabal, e colegas estimaram uma redução populacional de 80% dois anos após o enchimento do reservatório. “O bicho tenta fugir para algum lugar, acaba indo para os pastos, onde estão os animais domésticos, levando doenças que não existiam ali”, explica Galetti.
A maior parte dos pesquisadores ouvidos na reportagem acredita que o prejuízo aos serviços ambientais pode acabar afetando a própria agricultura. Os danos diretos são erosão e diminuição da oferta de água.
Ao longo de dez anos Joly conduziu um projeto na região do rio Jacaré Pepira, em Brotas (SP), onde comparou o grau de erosão entre solos com mata ciliar bem preservada, com pastagem e sem nada. “No último caso, a perda de solo chegou a 15 toneladas/hectare/ano. Na área de pastagem esse valor cai para cerca de 700 kg/ano. Na mata ciliar, não chega a 500 gramas. Claro que ninguém vai deixar o solo nu o ano inteiro, mas, se em vez da pastagem, que é uma cobertura de certa forma homogênea e contínua do solo, tiver uma cultura com plantio intercalado e áreas de solo aberto no meio, aumenta tremendamente a erosão”, explica.
Tundisi recorda uma situação similar que ocorreu nos Estados Unidos na década de 1920, na região do Texas. “Ali havia uma grama que protegia as planícies, mantinha a umidade. O governo incentivou a produção de trigo no local. Por alguns anos, tiveram colheitas magníficas. A partir de 1930 o solo começou a se degradar. Sem a grama, ocorreu uma seca e perdeu-se toda uma região. Isso só começou a ser recomposto em 1938/1939, com as florestas plantadas pelo governo Roosevelt. É um exemplo bem claro do que pode acontecer aqui.” (Leia mais no Ponto Crítico, pág. 50.)
Questionado pela reportagem sobre quais estudos teriam fundamentado as mudanças no Código Florestal, o deputado Aldo Rebelo não citou nomes de pesquisadores, nem publicações científicas. “Nos baseamos em estudos dos consultores da Câmara dos Deputados, engenheiros florestais, biólogos, e outros especialistas que ajudaram inclusive na redação da proposta”, disse. “Promovemos audiências no país inteiro, todos que quiseram se manifestar, o fizeram. Agora, não deu para ouvir pessoalmente esse ou aquele pesquisador. Há muitos pesquisadores.”
Ele disse que ouviu “especialmente a Embrapa”, e que um dos pontos mais polêmicos da proposta teria sido referendado pela área ambiental do governo. “A resolução de reduzirmos a mata ciliar nos córregos de 30 para 15 metros foi de acordo com o Ministério do Meio Ambiente”, disse. “Também nos baseamos em estudos de legislação comparada, já que não existe reserva legal em nenhum país do mundo.”
“Não foi bem isso”, rebateu João de Deus Medeiros, diretor de Florestas do ministério. “Tínhamos proposto que matas ripárias de rios com largura de até 10 metros tivessem 15 metros, em vez de 30 metros, exclusivamente nos casos de recomposição da vegetação.” Segundo ele, o MMA trabalha num texto alternativo ao do deputado, pois vários pontos são conflitantes com a política do governo federal. “Nossa proposta não pode ser interpretada como flexibilização. Todos os rios de até 10 metros precisam ter 30 metros de mata de cada lado. Não vamos permitir que se rea-lizem novos desmatamentos nas APPs.”
Após a reportagem ter reiterado a solicitação de avaliações científicas sobre as consequências ambientais da alteração da lei, o deputado disse que em vez de um corte científico, a reportagem teria um viés político. E, apesar de não ter indicado nenhum cientista favorável ao seu substitutivo, desafiou: “Quero ver se vocês só vão ouvir o grupo de pesquisadores que se opõem à proposta. Parece que sim. Então não é honesto de sua parte dizer que a reportagem será estritamente científica.”
Mesmo sem o deputado ter apontado pesquisadores e estudos favoráveis ao seu projeto, insistimos. Procuramos a Embrapa para responder à pergunta: é possível manter essa necessária proteção às florestas e ainda atender às demandas de um setor que tem forte apelo para a economia, ao representar quase 30% do PIB nacional?
A dúvida foi espalhada pelo setor ruralista do Congresso a partir de 2009, quando ganhou destaque um estudo feito por Evaristo Eduardo de Miranda, então chefe da Embrapa Monitoramento por Satélite, que sugeriu que faltaria terra para a expansão agrícola no país se fosse cumprida à risca a legislação ambiental, fundiária e indigenista. O trabalho, criticado por ambientalistas e pela academia, acabou não sendo endossado nem mesmo pela Embrapa.
Terra de sobra
“Não há problema, no momento, de falta de terra para expansão da agricultura e pecuária no Brasil”, afirma Celso Manzatto, chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente. “Mostramos nos últimos 20 anos que é possível ganhar produtividade sem precisar incorporar novas terras. Não significa, necessariamente, que vamos ter desmatamento zero. O que o país precisa, e ainda não dispõe, é de políticas de ordenamento do território que apontem claramente quais são as áreas a serem ocupadas para a produção agropecuária no futuro.”
Procurado pela reportagem, Miranda disse que sustenta seus dados: “Há um problema entre o uso efetivo da terra e o que fala a lei”. Mas afirma que não chegou a ser ouvido na formulação do substitutivo.
Já Gerd Sparovek, que fez um mapeamento semelhante de quanto do território deveria estar, ou já é, preservado, defende que não existe necessidade de revisar o código para permitir o desenvolvimento do setor agropecuário. Segundo ele, a agricultura tem espaço para se expandir sobre áreas de elevada e média aptidão agrícola que hoje são ocupadas pela pecuária extensiva (com 1,1 cabeça por hectare). Pelos seus cálculos, encontram-se nestas condições 61 Mha, dentre os 211 Mha ocupados pela pecuária. “Com isso é possível quase dobrar a área agrícola no país”, diz. Hoje a atividade se espalha por 67 Mha.
Para garantir esse espaço, seria necessário adotar técnicas de intensificação da pecuária e de integração com a agricultura, que, apesar de já estarem desenvolvidas do ponto de vista técnico, ainda são muito pouco adotadas. Sparovek acredita que a explicação para isso é complexa. “A falta de alternativas de desenvolvimento em outros setores, a ausência de remuneração da floresta em pé, a frouxa fiscalização, a valorização imobiliária de terras depois de desmatadas, a existência de mercado para produtos de desmatamento (carvão vegetal, madeira) e aspectos culturais do uso da terra como reserva patrimonial são, provavelmente, as razões para a contínua expansão da fronteira agrícola no Brasil através do desmatamento”, diz.
Por isso, ele acredita na necessidade de criação de um “gatilho que desencadeie uma nova forma de as coisas acontecerem”, que teria de vir no formato de uma lei ambiental sobre áreas privadas que tenha condições de ser cumprida. “Que seja adequadamente fiscalizada e restrinja de forma muito contundente a abertura ilegal de novas áreas bem como o desmatamento em situações em que ele não se justifica para o estabelecimento de uma agropecuária intensiva.”
Apesar de concordar que é possível crescer dessa forma, o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, em São Paulo, e professor de Economia Rural da Unesp de Jaboticabal, vê a questão com ressalvas.
“Estou convencido de que a integração pecuária-lavoura é algo que vai revolucionar a agricultura do mundo inteiro. É um caminho formidável para ampliar a produção, mas a incorporação de tecnologia é um processo que depende de uma política de renda para o campo que o Brasil não tem ainda. Razão pela qual ampliar a fronteira talvez seja mais barato”, afirma.
“Penso que o crescimento da produtividade, tanto na pecuária quanto na agricultura e na integração das duas atividades, pode resolver o problema do desmatamento da Amazônia. Mas não sei se resolve o problema do Cerrado. Lá é muito barato abrir terra. Então há uma tendência de ampliar essa área”, complementa.
O problema, diz ele, é que o código atual está “desatualizado em função da realidade dos fatos”. “Não estou fazendo juízo de valor se está certo ou errado, mas estou dizendo como é a vida real, não como a gente sonha. Porque é muito mais difícil uma reforma no crédito rural e ter tecnologias que sejam mais sustentáveis entrando rapidamente do que ampliar a fronteira.”
Rodrigues afirma que a proposta de Rebelo “tem um mérito enorme de ninguém ter gostado dela”. Para ele, isso significa que ela é equilibrada. Mas criticou o artigo 47, que prevê moratória de cinco anos em que não será permitida a supressão de florestas para o estabelecimento de atividades agropastoris – excetuam-se imóveis que já tenham autorização de corte emitida.
“O agronegócio sente que o país perde uma oportunidade de crescer”, diz. “Tem de fazer uma lei que seja realista. Se fizer uma lei que estabeleça uma moratória para o desmatamento do Cerrado, mas ela não for acompanhada de instrumentos de política econômica para o campo que permitam o crescimento da tecnologia e o aumento da produção nas áreas já disponíveis, [o desmatamento] vai acontecer.”
Para Manzatto, o problema é que há uma situação de conflito em algumas regiões que estão na ilegalidade, em especial nos casos considerados de ocupação consolidada (como os arrozais em várzea no sul do país), e é preciso discutir essa ocupação. “E é evidente que tem também um componente social de recomposição dessas áreas que precisa ser dimensionado”, diz.
Mas ele admite que nem a Embrapa tem condições de falar em quanto, por exemplo, poderiam ser alteradas as faixas de proteção no país. “Na verdade nós não temos os indicadores e até sugerimos uma moratória de pesquisas para que pudéssemos gerar dados um pouco mais técnicos e embasados para a discussão.”
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