A Convenção de Mudanças do Clima define que as tecnologias para viabilizar as ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento devem ser ambientalmente adequadas e promover um desenvolvimento verdadeiramente sustentável. A questão é como.
As mudanças climáticas são o maior desafio ambiental e de desenvolvimento do século XXI. Uma série de eventos climáticos muito intensos ocorridos nesta última década já indicava que o clima do planeta está passando por uma transformação significativa.
Em 2006, o Relatório Stern trouxe para o debate sobre mudanças climáticas fortes argumentos econômicos: o PIB mundial poderia sofrer perdas de até 20% nas próximas décadas caso não haja ações incisivas para a mitigação das mudanças climáticas.
No ano seguinte, o 4º Relatório de Avaliação do IPCC confirmou que as mudanças climáticas são causadas por ações humanas e que as suas conseqüências para o planeta podem ser mais drásticas do que se imaginava.
A 15ª. Conferência das Partes (COP 15) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, que será realizada este ano em Copenhagen, Dinamarca, já é considerada uma das mais importantes reuniões entre governos de todo o mundo.
Olhares atentos de todas as nações seguirão os passos dos negociadores reunidos na COP 15, ansiosos por um consenso em torno de um acordo global ambicioso para o período pós-2012. Espera-se que esse acordo faça com que a Convenção atinja seu objetivo maior que é “a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em níveis que permitam evitar interferências perigosas sobre o sistema climático global”.
As conseqüências dessas interferências perigosas seriam o aumento da intensidade e frequência de eventos climáticos extremos, como tempestades severas, enchentes, secas, ondas de calor e incêndios florestais, o que hoje já provoca impactos sociais, ambientais e econômicos significativos.
Os cientistas que investigam as mudanças climáticas consideram que para evitar tais consequências é necessário que o aumento de temperatura da Terra em relação aos níveis pré-revolução industrial se mantenha abaixo dos 2 oC.
E este limite tornou-se compromisso político das nações mais ricas do planeta. A declaração dos chefes de Estado dos países-membros do Fórum das Maiores Economias sobre Energia e Clima ao final de sua reunião em Áquila, Itália, afirmava que o aumento de temperatura da Terra não deve ultrapassar estes 2 oC.
Essa convergência entre a opinião dos cientistas e o compromisso político é fundamental para transformar a urgência em ação. No entanto, estamos mais próximos desse limite do que se imaginava.
Medidas realizadas pela National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) no Observatório Mauna Loa, no Havaí, indicam que a concentração atual de CO2 na atmosfera chegou a 387 partes por milhão (ppm) em julho de 2009. Isso é 38% superior aos índices estimados para o período anterior à revolução industrial (280 ppm).
E segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima, a temperatura da Terra já aumentou em média 0,76 oC em relação àquele período. As informações mostram que a crise climática é grave e que o desafio de contorná-la é imenso.
Um colapso do sistema climático de nosso planeta só poderá ser evitado caso as emissões globais de gases de efeito estufa diminuam drasticamente na próxima década, voltando aos índices de 1990 até o ano de 2020.
A grande responsabilidade assim como o dever de pagar a maior parte desta conta é dos países desenvolvidos. No acordo de Copenhagen, espera-se que os principais responsáveis pelo problema se comprometam a reduzir drasticamente suas emissões de gases de efeito estufa.
O WWF-Brasil e a Rede WWF, junto com outras organizações não governamentais, defendem que esse compromisso deva resultar em cortes de emissões em 40% até 2020 em relação a 1990 (ao ano-base da adotado pela Convenção de Clima) para aqueles países.
No entanto, as reduções de emissões por parte dos países desenvolvidos não serão suficientes para evitar a crise do clima da Terra. É fundamental, também, que os países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, viabilizem seu crescimento econômico, a geração de riquezas e a redução da pobreza seguindo um caminho diferente daquele trilhado pelos países desenvolvidos.
É preciso que seu desenvolvimento seja mais eficiente e muito menos dependente de carbono do que o que o que ocorreu com os países desenvolvidos. Isso pode contribuir para um desvio significativo da curva de crescimento de emissões de gases de efeito estufa, o que é crítico para o esforço global contra as mudanças climáticas.
No entanto, os países em desenvolvimento, principalmente os menos desenvolvidos, têm uma capacidade de ação muito inferior à dos desenvolvidos. As nações em desenvolvimento precisam de apoio para lidar com as mudanças climáticas de forma eficiente e evitar grandes impactos.
O secretariado da Convenção de Mudanças do Clima estima em US$ 200 bilhões de dólares o volume de recursos necessários para apoiar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento.
Além de metas de redução de emissões mais profundas, é preciso, portanto, que as nações mais ricas se comprometam também com ajuda financeira e com transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento.
A Convenção de Mudanças do Clima define que as tecnologias para viabilizar as ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos países em desenvolvimento devem ser ambientalmente adequadas e promover um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
Transferência de tecnologia para as nações em desenvolvimento foi um tema que recebeu atenção desde a primeira Conferência das Partes da Convenção de Mudanças do Clima, realizada em 1995.
Naquele mesmo ano instituiu-se a chamada Iniciativa de Tecnologia do Clima (CTI), que envolvia 23 países-membros da Agência de Energia Internacional (IEA) e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O objetivo da iniciativa era promover o desenvolvimento e a difusão de tecnologias climática e ambientalmente adequadas.
A CTI apoiou uma série de acordos bilaterais e multilaterais e ações para a cooperação tecnológica, envolvendo mais de 50 países, na identificação de necessidades tecnológicas sobre mitigação e adaptação às mudanças climáticas, avaliação de tecnologias existentes, desenvolvimento de estudos de viabilidade e análises de mercado, desenvolvimento de projetos-piloto, avaliação de impactos ambientais e disseminação de resultados e experiências bem-sucedidas.
A CTI ajudou, por exemplo, a promover disseminação de fornos solares na África do Sul, sistemas fotovoltaicos no Quênia, produção de biocombustíveis em Gana, uso de fluidos alternativos e de menor impacto para a camada de ozônio em refrigeradores na Índia, implementação de projeto de energia eólica em Honduras e também apoio ao Programa de Desenvolvimento Energético dos Estados e Municípios no Brasil (PRODEEM).
O PRODEEM, criado em 1994, tinha por objetivo gerar energia para localidades isoladas não atendidas pela rede convencional de energia, utilizando fontes renováveis locais.
A partir de 2003, foi incorporado ao Programa Luz para Todos. O PRODEEM resultou principalmente na instalação de sistemas fotovoltaicos em comunidades isoladas. Apesar de alguns resultados significativos, os impactos das experiências citadas foram relativamente limitados.
Os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) não têm explicitamente por obrigação que contribuir para a transferência de tecnologia.
No entanto, cerca de 36% dos projetos existentes resultam em transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento, especialmente em casos em que a tecnologia proposta não está disponível no país receptor do projeto.
África do Sul, Bolívia, Equador, Guatemala, Honduras, Indonésia, Malásia, México, Paquistão, Quênia, Sri Lanka, Tailândia e Vietnam são países cujos projetos de MDL incluem transferência de tecnologia, principalmente de países como o Japão, a Alemanha, os Estados Unidos, a França e o Reino Unido.
Já nos casos de Brasil, China, e Índia, os países com maior número de projetos de MDL em execução, a taxa de transferência de tecnologia é muito menor dado a existência de tecnologias locais disponíveis no caso da maioria de seus projetos.
A necessidade de aprofundar os esforços para transferência de tecnologia foi reconhecida quando, em 2001, o secretariado da Convenção de Mudanças do Clima nas Nações Unidas adotou uma série de ações e estabeleceu um Grupo Especializado em Transferência de Tecnologia (EGTT).
O grupo organizou uma série de eventos, oficinas e seminários para discutir a identificação de necessidades tecnológicas em países em desenvolvimento, informação tecnológica, capacitação, mecanismos de financiamento e tecnologia para adaptação às mudanças climáticas.
Na mesa de negociação da Convenção de Mudanças do Clima, o apoio financeiro e a transferência de tecnologia de países desenvolvidos para os países em desenvolvimento são temas de grande importância.
Em Copenhagen, espera-se que os compromissos assumidos pelos países desenvolvidos quanto à transferência de recursos e tecnologia para os países em desenvolvimento sejam tão ambiciosos quanto devem ser suas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa.
O caminho para um crescimento dos países em desenvolvimento baseado em uma economia de baixo carbono irá depender destes compromissos adicionais por parte das nações desenvolvidas.
O presente texto em negociação na Convenção, que deve resultar no acordo em Copenhagen, trata do tema tecnologia em diferentes aspectos como identificação de necessidades nos países em desenvolvimento, cooperação para o desenvolvimento de tecnologias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, capacitação, difusão, disseminação, implementação, transferência de tecnologia e propriedade intelectual.
Países desenvolvidos e em desenvolvimento têm apresentado posições convergentes quanto a alguns destes aspectos em discussão, como cooperação e capacitação.
Mas também divergem em relação a outros, como os relacionados à propriedade intelectual. Algumas propostas em discussão sugerem que, em determinadas circunstâncias, poderia haver flexibilização de direitos de propriedade intelectual, principalmente para permitir o acesso dos países menos desenvolvidos às inovações tecnológicas.
Propostas neste sentido sugerem que as regras para flexibilização devem ser reconhecidas por outros fóruns, como ocorreu na Declaração de Doha sobre o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) e a Saúde Pública, o que permitiu a países como o Brasil “quebrar” a patente para a produção de medicamentos para o combate à AIDS.
Países em desenvolvimento podem ser, além de receptores de inovações tecnológicas, difusores de tecnologia, transferindo conhecimento e experiência em diferentes áreas do conhecimento para outros países em desenvolvimento.
O Brasil tem imenso potencial para disseminar seu conhecimento em setores como energia e florestas. Já há parcerias com países da África para a instalação de antenas receptoras de dados de satélites, capacitação de profissionais e disseminação da tecnologia e conhecimento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais no monitoramento do desmatamento.
Além disso, nosso país já estabeleceu acordos de cooperação para a disseminação de conhecimento e experiência na produção de biocombustíveis para alguns países africanos. As negociações internacionais podem trazer estímulos, incentivos à cooperação sul-sul, o que poderia fortalecer a cooperação entre Brasil e outros países em desenvolvimento.
No caso do monitoramento de florestas, por exemplo, alguns países pobres não têm meios para a instalação de equipamentos, como antenas receptoras em seu território. O acordo de Copenhagen pode viabilizar ações como essas.
A negociação sobre o tema tecnologia será intensa até a COP 15. Se for assinado o esperado e necessário acordo global, ainda haverá um longo caminho a ser percorrido para que se regulamente o que for decidido em Copenhagen, para que as regras sobre transferência de tecnologia para mitigação e adaptação às mudanças climáticas sejam definidas.
Mas, considerando-se a capacidade de ação e necessidade de apoio, principalmente por parte dos países menos desenvolvidos, esse é um tema de máxima importância.
De acordo com o relatório Anatomia de uma Crise Silenciosa, publicado pelo Fórum Humanitário Global, presidido pelo ex-secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Anan, hoje mais de 300 mil pessoas morrem a cada ano e mais de 300 milhões são severamente afetadas por eventos climáticos extremos, como secas, tempestades e enchentes.
A maioria das vítimas encontra-se em países menos desenvolvidos. Somente com acesso a recursos e tecnologia será possível permitir a essas nações enfrentar o problema das mudanças climáticas de forma eficaz, evitando-se perdas humanas, ambientais e econômicas ainda maiores dos que aquelas já ocorrem hoje.
*Carlos Rittl é doutor em Ecologia, pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
Fonte: Rede de Tecnologia Social
http://www.rts.org.br/artigos/artigos_-_2009/mudancas-climaticas-e-transferencia-de-tecnologia